Por Joyce Rouvier
As ultramaratonas são corridas geralmente realizadas em locais remotos, em uma variedade de terrenos e em extremos de temperatura e altitude, que excedem a distância tradicional da maratona de 26,2 milhas (42,2 km). Os corredores devem suportar diversos estresses fisiológicos (por exemplo, depleção de substrato, desidratação, dano muscular, estresse oxidativo) que podem ter implicações agudas e crônicas à saúde e podem ser parcialmente tratados por meio de intervenções nutricionais. Apesar da importância da nutrição esportiva para o treinamento e provas de ultramaratona, atletas e treinadores enfrentam vários obstáculos para satisfazer as demandas nutricionais, incluindo: uma alta prevalência de alterações gastrointestinais do atleta (GI); as mudanças na palatabilidade de alimentos/líquidos associadas ao exercício de endurance prolongado; privação do sono, extremos de temperatura/altitude que são conhecidos por influenciar o apetite, entre outros.
Uma estimativa conservadora é que 30 a 50% dos atletas experimentam problemas relacionados ao trato gastrointestinal durante esses eventos. As causas de sintomas gastrointestinais adversos durante e após a corrida de ultramaratona parecem ser de natureza multifatorial, mas provavelmente estão relacionadas à maior permeabilidade intestinal e ao aumento do impulso simpático, o que resulta em resultados secundários clinicamente significativos, como lesão epitelial, função gastrointestinal prejudicada e respostas sistêmicas (isto é, endotoxemia e citocinemia), denominadas “síndrome gastrointestinal induzida pelo exercício”.
O tipo, a duração e a gravidade dos sintomas variam de forma individual, com problemas relacionados ao trato GI superior (por exemplo, náusea, vômito, azia) mais comuns em corridas mais longas em comparação com as queixas relacionadas ao trato GI inferior (por exemplo, inchaço, diarréia). A náusea costuma ser o sintoma mais comum que afeta a estratégia de corrida (relatada em 60% dos atletas), talvez devido ao impacto subsequente na capacidade de ingerir alimentos e líquidos. Os sintomas relacionados ao estresse gastrointestinal podem estar associados à predisposição, atividade da microbiota intestinal (com base na quantidade bacteriana e na diversidade de espécies) e na tolerância alimentar. A principal causa nutricional do distúrbio gastrointestinal durante a ultramaratona é a alta ingestão de carboidratos (CHO), particularmente soluções hiperosmolares (por exemplo,> 500 mOsm/ L e > 8% de concentração de CHO). Embora a literatura atual defenda taxas de ingestão de CHO de até 90 g/h para eventos acima de 120 min, normalmente usando misturas de glicose e frutose para otimizar múltiplos receptores, essas altas taxas de ingestão podem não ser realistas para corridas mais longas (acima de 6h). Além disso, essa taxa de ingestão pode levar à má absorção de nutrientes e à problemas gastrointestinais.
Sem um sistema gastrointestinal que funcione bem, a entrega de nutrientes será prejudicada e os sintomas adversos podem se desenvolver. É aparente que atletas bem treinados podem tolerar maior ingestão de CHO durante a corrida, e que a habituação a uma dieta com alto CHO, treinando o estômago/intestino, aumenta as taxas totais de oxidação desse nutriente, o que pode ser importante para sustentar o desempenho na corrida e reduzir o distúrbio gastrointestinal. O esvaziamento gástrico é um passo importante para fornecer carboidratos e líquidos exógenos ao músculo. Curiosamente, os atletas reclamam de bebidas acumuladas no estômago e inchaço, especialmente durante exercícios de alta intensidade ou muito prolongados em condições quentes. A desidratação pode contribuir para esse fenômeno e piorar as queixas. A realização desse “treinamento do estômago” tem dois efeitos principais: (1) o estômago pode se estender e conter mais alimentos e (2) um estômago cheio é melhor tolerado e não é percebido como tão cheio. Ambos os aspectos podem ser relevantes para uma situação de exercício. Estudos também demonstraram que o esvaziamento gástrico de carboidratos pode ser acelerado aumentando a ingestão alimentar desse nutriente. Pensa-se que o treinamento do intestino pode aliviar alguns desses sintomas, talvez melhorando esse esvaziamento e a percepção de plenitude (inchaço reduzido), melhorando a tolerância a volumes maiores e aumentando a velocidade de absorção, causando menos volume residual e menores desvios osmóticos.
Múltiplos carboidratos transportáveis aumentaram a absorção e oxidação de carboidratos e isso foi associado ao aumento da absorção de líquidos. Portanto, outro benefício do aumento da capacidade de transporte de carboidratos é que a ingestão de líquidos provavelmente também será melhorada. Parece, portanto, razoável sugerir que vários dias de uma alta ingestão de carboidratos podem aumentar o conteúdo de SGLT1 (co-transportador de glicose) e a capacidade de absorver glicose, mas uma exposição mais prolongada à dieta pode resultar em maiores adaptações. Embora nem sempre seja encontrado um vínculo com a ingestão nutricional, algumas práticas correlacionam-se com a incidência de problemas gastrointestinais: ingestão de fibras, ingestão de gordura e soluções altamente concentradas de carboidratos parecem aumentar a prevalência desses problemas. Com base nos dados de animais, um aumento de carboidratos na dieta de 40 para 70% pode resultar na duplicação dos transportadores de SGLT1 durante um período de 2 semanas.
Embora muitos corredores de ultramaratona raramente dependam exclusivamente de bebidas esportivas para ingestão de energia e / ou CHO durante as corridas, o uso de soluções com vários carboidratos transportáveis pode ser uma estratégia eficaz de curto prazo para limitar a probabilidade de não realizar a prova devido ao consumo insuficiente de energia. Reconhecer o início precoce do desconforto gastrointestinal e criar estratégias para manter a ingestão de energia próxima aos valores-alvo independentemente, pode ser a chave para gerenciar alguns problemas relacionados a ele. Embora seja contra-intuitivo, pode haver alguns casos em que comer, independentemente da náusea, aliviará mais esses sintomas, especialmente quando esta é causada por hipoglicemia.
Quando os atletas restringem os carboidratos, seguindo uma dieta pobre nesse nutriente, rica em gordura ou cetogênica ou reduzindo a ingestão de energia para perder peso, a carga diária reduzida de carboidratos provavelmente reduzirá a capacidade de absorvê-los durante a competição. Essa pode ser uma razão pela qual esses atletas parecem reportar mais problemas gastrointestinais. Como o intestino é tão adaptável, parece prudente incluir treinamento com alta ingestão de carboidratos na rotina semanal e ingerir regularmente carboidratos durante o exercício. Com essas estratégias, o intestino pode ser treinado para absorver e oxidar mais esse nutriente, o que por sua vez deve resultar em menos sofrimento gastrointestinal e melhor desempenho.
Estratégias a serem consideradas:
- Experimente e pratique a nutrição das corridas em sessões de treinamento, incluindo qualidade e quantidade específica de alimentos e líquidos.
- Experimente diferentes volumes de fluido, taxas e concentrações de ingestão de carboidratos e encontre os níveis ideais de tolerância individualizados. Primeiro, aumente o volume de líquidos e tente aumentar a concentração de carboidratos.
- Experimente diferentes tipos de carboidratos (por exemplo, misturas como glicose-frutose) e formas (por exemplo, fluidos, géis, barras, purê, frutas e outros alimentos ricos em carboidratos).
- Altere a taxa aguda de ingestão (ingestão pequena e frequente) e experimente maiores taxas de ingestão logo no início da corrida, pois os sintomas gastrointestinais geralmente são menores durante as primeiras 2 horas de corrida e começam a se desenvolver a partir de então.
- Pratique estratégias de nutrição em eventos de corrida ultramaratona menos importantes para tentar identificar fatores contribuintes “externos” (por exemplo, efeitos da viagem, estresse da competição, mudanças na disponibilidade habitual de alimentos, condições climáticas e ritmo).
- Identifique as provisões de alimentos e líquidos (incluindo água engarrafada) de cada participação no evento da ultramaratona e faça experiências com elas de forma crônica (ao longo do dia) e durante o exercício. Isso é especialmente importante a ser considerado ao sair da base (por exemplo, nacional ou internacionalmente).
- Em corridas mais longas (≥8 horas), experimente várias fontes de alimentos sólidos facilmente digeríveis e ricos em carboidratos. Evite alimentos excessivamente ricos em proteínas, gorduras, fibras e oligonossacarídeos e polióis fermentáveis.
- E por fim, nessas corridas mais longas, nos casos em que a tolerância à ingestão de carboidratos e os sintomas gastrointestinais são um problema, o enxágüe bucal com uma bebida de carboidratos pode apoiar a manutenção da carga de trabalho através da rede sensorial do córtex oral.
Para te ajudar com essas estratégias, procure sempre um nutricionista e um educador físico capacitados.
Referência
Costa, et al. Nutrition for Ultramarathon Running: Trail, Track, and Road, International Journal of Sport Nutrition and Exercise Metabolism, 2019, 29, 130-140.
Jeukendrup, A. E. Training the gut for athletes, Sports Med (2017) 47 (Suppl 1):S101–S110.
Tiller et al. International Society of Sports Nutrition Position Stand: nutritional considerations for single-stage ultra-marathon training and Racing, Journal of the International Society of Sports Nutrition (2019) 16:50.